sábado, 6 de agosto de 2022

Revisitando o passado

 Ah, Rio Paraibuna, quem te viu quem te vê! No passado, nós pescávamos em seu leito, algumas pessoas divertiam-se pulando  de suas pontes e outras participavam de competições realizadas pelo Clube Naútico.

Ah, você mais parecia um menino travesso correndo livre, sem limites a transbordar. Talvez acostumados com suas peripécias, fizessem com que os juiz-foranos ignorassem o alerta do jornal local "Espera-se, hoje, nesta cidade uma tromba d`água´".

E na véspera de Natal de 1940, o temporal caído no município de Santos Dumont provocou o transbordamento do Rio Pinho, um de seus afluentes. Vinte e quatro horas depois acontecia a maior enchente de todos os tempos em Juiz de Fora.

Logo após a tragédia, o Diário Mercantil publicava um tabloide sobre os estragos ocorridos na cidade,  suplemento, que foi entregue, em mãos, ao presidente Getúlio Vargas pelo deputado *Jarbas de Lery Santos e pelo jornalista Renato Dias. Essa ação, muito contribuiu para que Vargas decretasse uma suspensão por quinze dias de todas obrigações fiscais do município e a construção de casas para os desabrigados.

Não havia tempo a perder, imediatamente, o prefeito Rafael Cirigliano reuniu-se com a Comissão de Socorro às Vítimas e doou uma área do bairro Poço Rico e construiu cento e cinquenta casas, cujo morador responsável era o vicentino sr. Argemiro Medeiros.

Em meio a tanta desolação nasceu a Vila Furtado de Menezes. Primeiro recebeu o nome de Flagelo, devido ao acontecimento sofrido por seus moradores, o segundo Vila Proletária, pelo fato deles serem operários de diversos estabelecimentos na cidade, esse tenho registrado em minha certidão de nascimento.

No ano de 1947, a Prefeitura Municipal de Juiz de Fora doou à Fundação das Casas Populares do `Poço Rico mais duzentas e vinte casas, que foram colocadas à venda sob a responsabilidade do sr. Pedro P. de Paula. Os novos proprietários autodenominaram-se moradores das Casas Populares do Poço Rico, negando aceitar as denominações anteriores, surgindo, assim, o seu terceiro nome. 

Na década de 50 foi erguido um pomposo arco de concreto armado, que trazia inscrito o seu quarto nome bairro Nossa Senhora do Líbano. Embora, esse nome ainda conste da fatura fiscal emitida pela Cesama, Companhia de Saneamento Municipal; ele nunca foi reconhecido pela comunidade. Algumas pessoas contam , que com as mudanças de altura dos modelos de transportes coletivos e de cargas, a prefeitura demoliu o monumento. Até pouco tempo atrás, podíamos ver uma placa verde sob o poste,  Travessa Martinho da Fonseca, com a inscrição bairro Nossa Senhora do Líbano, que desapareceu sem que alguém soubesse de seu paradeiro.

Já a sua atual denominação, Vila Furtado de Menezes foi indicado pela Sociedade São Vicente de Paula  em homenagem a Joaquim Pedro Furtado de Menezes. Mas afinal, quem foi Furtado de Menezes? Ele foi um confrade vicentino conhecido como o Servidor do Pobre. Idealizador da obra Cidade Ozanam -BH e possuía uma longa folha de serviços prestados à causa católica.

Ah, que saudade do número105 da rua Furtado de Menezes. Na frente, o botequim de meu pai, Carlos de Morais, um líder comunitário. Em seu estabelecimento nasceu a ideia de construção da Sede Operária, local onde realizavam bailes para arrecadar dinheiro, que era revertido para fazer casamentos, funerais, comprar uniformes para o time de futebol e outras melhorias para o bairro. 

À noite, após o trabalho, alguns fregueses reuniam-se para contar causos de alma de outro mundo,  Mula-sem-cabeça, Saci e outros personagens apavorantes. Vou confiar a vocês, leitores, um segredo de família, contavam naquela época, que o marido de tia Mercedes, o sr. Francino, virava Lobisomen. Não quero assustar ninguém mas em noite de lua cheia, ele desapareciaaaaaa!!!! E nesse cenário, recebi informações valiosas, ouvi muitas histórias contadas por eles, que sem saberem teciam o meu universo cultural.

A nossa casa ficava geminada ao comércio. Fui alfabetizada no fundo do quintal em meio as galinhas, os porcos e as árvores onde eu pendurava de galho em galho extravasando toda a minha energia. Assim, como Paulo Freire," o chão foi o meu quadro negro; gravetos, o meu giz." Por isso, ao chegar à escola estava alfabetizada.

Quando a professora entrou na sala de aula, eu devorava o meu livro de leitura sob os olhos espantados dos meus coleguinhas. Saí da classe com a professora e o livro, acompanhada pelos olhares intrigantes como se tivesse aprontado uma traquinagem.

Fui conduzida ao gabinete da Madre Superiora Adelina, a quem tanto temia. Aquela mulher, de manto marrom e gola engomada, curvou-se e colocou-me em seu colo. Logo em seguida, pegou a grande Bíblia e pediu para que eu lesse um de seus trechos. Até hoje, não entendi o que se passou naquele recinto. Só sei, que fui promovida para uma sala mais adiantada.

A escola tinha postura conservadora e preconceituosa pois  selecionavam seus alunos dentro dos critérios "adiantados" e "atrasados". Não voltei mais para aquela classe e enquanto aguardava o meu material, deixava transparecer o quanto não cabia em mim. Mas como todo momento de glória é efêmero, o meu não poderia ser diferente, ao entrar em outra sala e perceber que todos liam. Custou-me adaptar à nova situação.

Iniciei um novo livro, por meio dele apaixonei-me por Cecília Meireles no troc...troc... de seus tamanquinhos, talvez porque usássemos tamancos e foi com Afonso Celso em sua poesia Amiguinhos do Gato, que escolhi o meu animal de estimação.

Depois, de um tempo, o imóvel foi vendido, comprou-se uma casa na rua Carneiro da Silva e o comércio transferiu-se para a rua São Judas Tadeu. Pouco senti com a mudança, pois a nova residência além do quintal, possuía um jardim com roseiras, dálias, margaridas e um pé de romã. Ao entardecer debruçava-me sobre o muro e divertia-me vendo os meninos brincarem de pique-bandeira, de esconde-esconde e de bolinha de gude. 

Os meus pais eram rígidos, tinha poucos amigos e passava a maior parte do tempo em companhia dos livros de Monteiro Lobato, dos Irmãos Grimm, de Christian Andersen, das Mil e Uma Noite, as fábulas de Esopo, de Daniel Defoe,  Jonathan Swift e tantos outros. E nesse entrelaçamento de leitura, eu nasci...leitora.

A minha vida limitava-se em casa, na escola e a ajudar o meu pai em seu comércio. Colecionava enciclopédias, em fascículos, que ficavam sobre o balcão para quem os quisessem ler. À tarde, eu e os fregueses, mais jovens, aguardávamos ansiosos a chegada de sr. Oswaldo, funcionário do Diário Mercantil, que nos trazia as notícias impressas da cidade e do sr. Ferreira, bancário, com o Jornal do Brasil que ampliava nossos horizontes. Este, sempre muito bem vestido de chapéu, com seu terno cinza, gravata listada. Tinha ares diplomático, falava mais de um idioma e nos incentivava a escrever para os consulados solicitando  prospectos, nos quais ganhávamos o mundo.

Ah... o tempo passou, daqui de minha casa avisto o velho Paraibuna, que segue indiferente como se nada tivesse acontecido. Que bom, que nossos familiares, apesar de toda desolação, confiaram e  acreditaram que dias melhores viriam. Hoje, estamos aqui, frutos da bonança cheios de histórias de infância e adolescência para contar e impregnados de saudades.
Essa foi minha história, aguardo a sua, conte para mim!

*  Nome que mais tarde foi dado ao ginásio construído pela comunidade