quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Como um cachimbo tornou-se uma interação entre alunos e a escrita

                                                                                    
Coisa de valer a pena: - " a verdadeira Pedagogia é a arte de fazer da curiosidade algo metódico e permanente. É assim que o ser humano conhece e se reconhece. É importante aprender para que nossas aulas não se transformem em velhas e enfadonhas lições". Paulo Freire

                                                      RESUMO

     Apresenta trabalho desenvolvido na 3ª série da  Escola Municipal Prefeito Dilermando Cruz Filho, a partir da literatura de Monteiro Lobato, que desencadeou uma relação profícua e prazerosa do aluno com a leitura  e a escrita.

Palavras-chave: história, literatura, escrita, cultura.




       

     Imaginem vocês se, um dia, um de seus alunos entrasse em sua sala de aula, trazendo às  mãos um toquete de bambu. O que fariam?
     Na aula anterior, estudávamos a biografia de Monteiro Lobato. Vendo Fernanda, ansiosa, diante de mim como se esperasse uma reação, assustada,  a ela perguntei :
     - De quem é o cachimbo?
     Ela simplesmente respondeu:
     - Do Saci!
     Neste momento, a classe levantou outras hipóteses:
     - É do tio Barnabé porque aparece sempre nas histórias com seu cachimbo ao lado.
     - Não, só pode ser da tia Anastácia que em horas de folga, da cozinha, aproveita para tirar umas baforadas - falou Guilherme.
     - Nem pensar, disse Camila, tá na cara que pertence ao Cacique, para falar de paz.
     A regência da sala já não me pertencia, o cachimbo ia de mão em mão e as opiniões surgiam num debate caloroso. Diante daquele processo interativo, criei coragem e vivenciei aquele acontecimento fundamentado na fala do professor João Wanderley Geraldi: "Às vezes sem saber, ao alienarmos o nosso direito de construir nossas aulas, nos tornamos meros executores de aulas elaboradas por outros".
     Naquela tarde, quem poderia imaginar que um simples objeto de bambu entalhado pela natureza pudesse vir a ser a interlocução nesta e em outras aulas, tornando-se o detonador deste projeto?
    

                                       Um cachimbo de bambu?                                            

     A sala virou um caos e foi preciso pedir que todos se acalmasse e começassem a investigar o caso. Fui salva pelo sinal do recreio e, após, algumas crianças chegaram curiosamente à porta, perguntando se realmente havia acontecido o fato.
     Marcamos, no dia seguinte, uma visita a nossa  bibliotecária, Maria do Carmo Batista dos Santos, que  já nos aguardava com um farto material anteriormente selecionado a pedido da turma.
     Todos queriam ler a obra de Monteiro Lobato, começando assim a investigação do objeto. Mesmo aqueles que não se diziam leitores, folheavam os livros na tentativa de uma solução.
     Num outro momento, sugeri que registrassem aquele acontecimento. Foi aí que vi os seus olhos brilhando e os lápis correndo folha afora, escrevendo as suas histórias. Confesso que fiquei emocionada diante daqueles pequenos leitores-escritores.
     Enquanto escreviam, juntei-me a eles e escrevi a minha:


                                         Um presente inusitado

     O mês era abril, o conteúdo biografia. Nada mais instigante que falar sobre Monteiro Lobato. Sônia não esondia a paixão que tinha  por sua obra.
      A aula já havia começado. A professora sentia algo no ar. As crianças agitadas não paravam  de falar, aquele sopro no ouvido..., aquele risinho no fundo da sala, indicava que a rotina não seria a mesma.
      Como se nada bastasse, a menina Fernanda entrou, trazendo nas mãs um objeto que encontrara na porta. A professora e os alunos se entreolharam por alguns segundos. Ela tentou disfarçar, mas um arrepio correu-lhe por todo o corpo.Bruscamente tomou o cachimbo em suas mãos e virando para eles perguntou-lhes a quem pertencia.
      A classe foi unânime:
      - Do SACI!
      E para piorar a situação, a pequena Juliana folheou novamente o seu livro "O Saci", de Monteiro Lobato, e mostrou em uma das páginas o tinhoso sem o seu pertence.
     A mestra não se  deixou abater, respirou fundo e evocou com todas as forças aquela entidade. Num piscar de olhos ele apareceu pulando sobre as carteiras e pedindo para que as crianças não se assustassem.
      Comentou que não pudera resistir ao passar pela Vila Ideal *  ver tantas crianças lendo suas histórias. Fez homenagens a professora, pois foi através  dela que elas passaram a vê-lo com outro olhar. Leu para os pequeninos "A importância do ato de ler, de Paulo Freire, e " Um escritor nasce, de Drummond. Eles ficaram maravilhados.
      Naquele momento de magia, despediu-se de todos e desculpou-se pela forma como ali aparecera e deixou como lembrança ... o seu cachimbo.

       Alguns alunos sentiam dificuldades em suas escrituras. Então solicitei àqueles que iam terminando que ouvissem as histórias de seus colegas e fizessem como os escribas** faziam no passado.
      Quem passasse do lado de fora poderia ouvir nitidamente as ideias pipocando no ar. Ao término da tarefa, houve trocas de textos e brigavam para a leitura dos mesmos.
       Os alunos dividiram-se em grupos e foi criado o "Momento Literário" para que dessem a todos a oportunidade de fazer suas apresentações.
       A professora Virgínia Fátíma Paulino dos Santos, da 2ª série, abriu um espaço, para que alguns lessem em sua classe, contribuindo, assim, para a valorização daquele momento.
       Após a maratona literária, li uma adaptação dos textos de Paulo Freire, "A importância do ato de ler" e de Drummond, "Um escritor nasce".
       A finalização do nosso trabalho foi a produção de texto, a  leitura das biografias dos três escritores e a exposição com os cartazes da obra de Lobato.


                                   A saga do cachimbo continua...

       No ano seguinte, mais uma vez, o cachimbo apresentado pela minha história foi detonador, para que os alunos das 6ª séries da Escola Municipal Tancredo Neves, Colônia de São Pedro***, definissem as atividades a serem apresentadas na 1ª Mostra Cultural " Tancredo mostra sua arte" de 25/08/03
 a 30/08/03.
       A 6ª série A optou pela paráfrase, a 6ª B escolheu as travas-línguas e a 6ª C a gincana folclórica. 
       Separei a narrativa do aluno Jonathan de Paula, 6ª A, para a refacção coletiva das 6ª séries. A princípio houve ciúmes, que foram contornados ao lerem o que o colega havia escrito.
       Um dos alunos da 6ª C disse ter contado a história para seus familiares e nem percebeu que, num bambuzal, ao lado de sua casa, um Saci ouvia atentamente. Quando terminou, ele aproximou-se emocionado e me mandou um convite para que eu fosse morar na Colônia dos Sacis e mandou de presente... outro cachimbo.
       Agradeci a gentileza e feliz porque mais uma vez a imaginação ficou solta e pudemos nos divertir bastante.



                                                   CONCLUSÃO

      Para que possamos vivenciar momentos como esses, temos que ter a coragem e a vontade de repensar a nossa prática diariamente. A partir daquele instante, tinha início uma viagem fantástica ao imaginário daquelas crianças e adolescentes. Estavam desinibidas com relação à escrita, falavam sobre os seus livros, dando suas opiniões, mas também  sugestões de leituras. Percebi os grupos organizando-se, trocando ideias com mais facilidade. Encerramos com uma avaliação oral sobre as atividades ali acontecidas.
        Não sou supersticiosa e espero que você leitor ou leitora, também não o seja. Acreditem se quiser! Hoje moro no bairro Colônia de São Pedro e da minha janela posso ver um grande  bambuzal no meio da mata.
         Não me perguntem como cheguei até aqui, mas me ajudem a desvendar este mistéeeerio!!


                                                   BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Carlos Drummond. Um escritor nasce. In: MENDES, Maria Helena Braga. Vamos aprender redigir? Belo Horizonte: FURMAE/PUC-MG, 1984.

BAGNO, Marcos. Pesquisa na escola. São Paulo. Loyola, 1998

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1999.

BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares da Língua Portuguesa. Ensino Fundamental: Brasília, MEC, 1997.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1988.

GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula: leitura & produção. Cascavel: Assoeste, 1984.

NOGUEIRA, Adriano (org.) Contribuições da interdisciplinaridade para a ciência, para a educação, para o trabalho sindical. Petrópolis: Vozes, 1994.





*  Vila Ideal: bairro de Juiz de Fora/MG


** Escriba: escrivão público, notório. In: Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. MEC, s/d.


*** Colônia de São Pedro: atual bairro São Pedro de Juiz de Fora/MG